Depressão e Capacidade Materna
Psicóloga e mãe, Daniela Bittar percebia uma dificuldade de mulheres de baixa renda conseguirem ter acesso a acompanhamento psicólogo. Pensando nisso fundou, em 2017, ao lado da também psicóloga Daniela Salum, o Gamas, um grupo de apoio para mulheres, que hoje conta com quase 10 mil seguidoras e realiza encontros semanais, para troca de ideias, apoio psicológico e acolhimento. São centenas de casos de superações e realizações Também faz parte do Sentir Mulher, que realiza cursos e presta assistência clínica e interdisciplinar em saúde da mulher e reconstrução familiar. Conversamos com Daniela sobre um assunto que infelizmente ainda é tabu na sociedade brasileira: a depressão materna. A doença é comum durante e após a gestação, mas ainda bastante negligenciada.
Uma em cada quatro brasileiras apresenta sintomas de depressão pós parto. O dado é de um estudo da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz, realizado pela pesquisadora Mariza Theme em 2016. Foram entrevistadas cerca de 23 mil mulheres entre 6 e 18 meses após o parto. O resultado descreve um índice de 26,3% de mulheres com sintomas no país.
Um indicativo de que a depressão afeta outras esferas da vida da mulher está na pesquisa da economista Fernanda Seidel Oliveira, da UniCamp (Universidade Estadual de Campinas), segundo a qual o salário de mulheres com depressão é cerca de 20% inferior ao de mulheres saudáveis. O mesmo estudo indica que a probabilidade de mulheres com depressão procurarem trabalho cai 10%. Em 2017, a Organização Mundial da Saúde (OMS), afirmou que a média de casos de depressão pós-parto em países de baixa renda é de 19,8%.
O que leva a mulher à depressão?
A depressão na mulher é algo que acontece, em grande parte, por fatores hormonais. Algumas mulheres tem predisposição genética a depressão, com índice ainda mais alto da possibilidade de apresentar a doença em algum momento da vida. A gravidez é um momento de muita oscilação hormonal e essa condição traz variações emocionais muito bruscas e repentinas. Se a mulher tem predisposição mas nunca apresentou depressão, pode ter certeza q na gravidez ela vai se manifestar. Mulheres que já apresentam histórico de depressão anterior à gravidez, não deveriam interromper o tratamento durante a gestação. Isso acontece muito. Essa interrupção dificulta a eficácia do tratamento, produz picos de variação de humor maiores e se ela volta a se tratar após a gravidez, ocorre uma lentidão nos efeitos dos medicamentos. Se a mulher tem depressão forte e para de se tratar durante a gestação, ela tem riscos reais de entrar em psicose puerperal.
Essa possibilidade se manifesta independente de como correr a gravidez?
Bom, se a mulher entra em uma gravidez tumultuada, difícil, com muita turbulência, ela tem propensão muito grande a desenvolver depressão pós-parto.
O que mais na rotina de vida da mãe pode influenciar nessa quadro? No Brasil, 52% das famílias são compostas por mães solo. A mulher tem que dar conta de todas as funções caseiras, paralelamente a criação dos filhos sozinha. Obviamente muitas delas entram no burn out, vulgo estafa.
Essa condição, por si só, já levaria a mulher a depressão, somada aos picos hormonais da gravidez então, o estado piora. Esse universo de tarefas leva ela a fatores culturais repetitivos, fatores sociais repetitivos, fatores de trabalho repetitivos.
O burn out materno acontece muito nos dias atuais. A mulher tem que entregar com a mesma competência e precisão no trabalho, em casa, para a família, para ela mesma. Ela tem q ser mãe, profissional, esposa e muitas vezes ela se sobrecarrega pra entregar proporcionalmente. Ela é cobrada por isso. É cobrada antes da gravidez, mas também durante a gravidez, um período em que não só a constituição cerebral e biológica muda, mas um momento de recolocação da mulher no mundo, de replanejamento de vida.
Como a família pode interferir nesse momento?
Eu percebo também uma grande diferença da maternidade moderna para o modo como a maternidade era estabelecida antigamente. Em outros tempos, era formada uma rede maior de familiares ao redor, tias, primas, irmãs, avós..essa rede constituía um apoio não só logístico, mas também emocional. Hoje, a vida da mãe que trabalha, em realidades urbanas e rotinas corridas impossibilita que esse círculo de apoio se instaure. Ela se sente sozinha, com a casa e o filho.
E o pai, onde entra?
O papel do pai tem mudado a cada dia. Ele tem participado mais de tarefas domésticas. Porém, esse é um processo longo que ainda está longe de se tornar uma realidade. O pai, homem, marido, ele tem uma função muito grande nesse trabalho do puerperio. Ele deve cuidar da mulher, dar a ela a possibilidade de que ela tenha um pouco dela para ela mesma. Quando ela não tem essa figura masculina, ela entra em uma fusão da própria identidade com a função materna tão grande que até chegar a perder a individualidade. É natural que toda mulher, independente de ter um companheiro, entre nesse luto de si mesma – ela não sabe mais quem era antes e não sabe mais quem será dali pra frente. O pai tem a função de perceber e proteger. A mistura da mãe com o filho recém-nascido é gigante, é simbiótica, é como se a criança confiasse mais naquele ser do que em todos do resto do planeta – ela despeja na mãe sensações e expectativas que não direciona para mais ninguém. O pai precisa perceber que a instabilidade da mulher é também biológica ela está realmente se reconfigurando nesse momento. Ele precisa perceber que são disfunções, não “chatice”. Se o baby blue passar de 4 semanas, ele tem que ter essa iniciativa de procurar ajuda para ela.
O que é baby blue?
É uma condição que acomete 9 entre 10 mulheres, após o nascimento do filho. O baby blue é uma queda hormonal decorrente do parto. Se despedir da barriga é uma angústia por si só, que piora somada com a deficiência hormonal de período, gera transtorno emocional. Então a mulher entra no período de amamentação e produz prolactina, hormônio que inibe a produção da testosterona, outro índice de angústia.
Essa condição afeta a relação com os filhos?
Isso acomete a criação dos filhos de todas as maneiras! A depressão traz um adoecimento psíquico enorme. A mulher entra em uma irritabilidade tão grande, que a criação do filho acaba gerando gritos, brigas, precipitações. Ela pode ficar extremamente desmotivada, acamada.
A primeira infância é um momento muito delicado. As crianças são esponjas, elas absorvem tudo ali ao redor, inclusive da convivência com a mãe. Existe uma questão, que é visceral, entre filho e mãe: o bebê só descobre q ele é outro mês la pelo 6o, 7o, 8o mês, na angustia da separação. Mas a mulher fica nessa fusão com a criança a vida toda. Isso acontece por que as pessoas não levam esse período a sério e não tratam precocemente.
Como as pessoas reagem a esse tipo de diagnóstico?
A gente recebe pessoas que chegam no consultório com depressão e quando falamos em medicação elas se assustam! As pessoas têm uma resistência muito grande ao medicamento com depressão. Elas precisam entender q isso não é emocional apenas. É uma disfunção bioquímica e precisa ser tratada como tal. O que mais acontece é que essas situações são tratadas com negligencia e ignorância. Nem mesmo os profissionais nem os obstetras costumam considerar a depressão.
Por quê se dá essa negligência?
Infelizmente não temos profissionais capacitados em identificar o adormecimento gestacional puerperal, principalmente entre obstetras e psicólogos. Já recebi mulheres com filhos de 1 ano de idade, sofrendo de depressão pós-parto, sem diagnóstico. Os filhos de mães em depressão têm grande propensão em desenvolver patologias como TDAH, ansiedade, entre outras.
O que falta na conscientização profissional e política para isso?
Existe um questionário simples, que aplicamos em nossas pacientes. Ele deveria estar em todas as UPAs. Esse questionário identifica se a mulher está sofrendo de depressão ou tem tendência a manifestar a doença. Muitas mulheres passam pela depressão sozinhas e sem tratamento adequado. Quanto mais é prolongado o sofrimento sem tratar mais diicil é o tratamento depois. Temos diversos casos de suicídio materno e infanticídio. As mulheres não se medicam durante a medicação e muitos obstetras interrompem a medicação delas durante a gestação, o que faz com elas acabem entrando na psicose puerperal. Não se suspende a medicação de uma mulher grávida. Um bom profissional tem totais condições de identificar, diagnosticar e tratar a paciente; os estudos científicos já apontam anti-depressivos seguros e eficazes para gestantes e lactantes. É um problema de saúde, não só emocional ou cultural. Se você for a um hospital público, não existe psiquiatra de plantão. Se você for em um clínico, muitas vezes ele não consegue nem perceber q você está deprimida e muitas vezes não vai saber medicar uma gestante. Não há um tratamento consistente, com acompanhamento psicológico para gestantes. Existe um desinteresse enorme nessa área. A gente poderia estar em um lugar bem melhor.
Qual o tratamento ideal para a depressão materna?
O tratamento adequado é psicológico, com medicamentoso quando necessário, com atividade física.
Se você conhecesse uma mulher que acabou de ser mãe e está em depressão, com dificuldade em ser compreendida no casamento, sobrecarregada e sem saber o que fazer, qual seria sua dica para ela?
A primeira dica é que ela procurasse ajuda medicamentosa, psicológica, e realizasse atividade física. São as 3 coisas q irão ajudá-la. Não se trata depressão apenas no cunho psicológico. A gente precisa pelo menos inicialmente, ter intervenção medicamentosa.